Comentário Geral n. 22 do Comitê de Direitos Humanos: Artigo 18 (Liberdade de pensamento, consciência ou religião)

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Tradução não oficial realizada pelo Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião – CEDIRE

Non-official translation by the Brazilian Center of Studies in Law and Religion – CEDIRE

Comentário Geral n. 22 do Comitê de Direitos Humanos: Artigo 18 (Liberdade de pensamento, consciência ou religião)


Adotado na Quadragésima Oitava Sessão do Comitê de Direitos Humanos, em 30 de julho de 1993 CCPR/C/21/Rev.1/Add.4, Comentário Geral n. 22. (Comentários gerais)


1. O direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião (que inclui a liberdade de manter crenças) do artigo 18.1 é de grande alcance e profundo; abrange a liberdade de pensamento em todos os assuntos, a convicção pessoal e o compromisso com a religião ou crença, quer se manifeste individualmente ou em comunidade com os outros. O Comitê chama a atenção dos Estados Partes para o fato de que a liberdade de pensamento e a liberdade de consciência são protegidas igualmente com a liberdade de religião e crença. O caráter fundamental destas liberdades reflete-se também no fato de esta disposição não poder ser derrogada, mesmo em tempo de emergência pública, tal como referido no artigo 4.2 do Pacto.

2. O artigo 18 protege as crenças teístas, não teístas e ateístas, bem como o direito de não professar qualquer religião ou crença. Os termos “crença” e “religião” devem ser interpretados de modo amplo. O artigo 18 não se limita em sua aplicação às religiões tradicionais ou às religiões e crenças com caraterísticas institucionais ou práticas análogas àquelas das religiões tradicionais. Por conseguinte, o Comitê considera com preocupação qualquer tendência a discriminar qualquer religião ou crença por qualquer motivo, incluindo o fato de serem recém-estabelecidas, ou representarem minorias religiosas que possam ser objeto de hostilidade por parte de uma comunidade religiosa predominante.

3. O artigo 18 distingue a liberdade de pensamento, consciência, religião ou crença da liberdade de manifestar religião ou crença. Não permite qualquer limitação à liberdade de pensamento e de consciência ou à liberdade de ter ou adotar uma religião ou crença de sua escolha. Essas liberdades são protegidas incondicionalmente pelo artigo 19.1, assim como é protegido o direito de todos a ter opiniões, sem interferência. De acordo com os artigos 18.2 e 17, ninguém pode ser obrigado a revelar seus pensamentos ou adesão a uma religião ou crença.

4. A liberdade de manifestar religião ou crença pode ser exercida “individualmente ou em comunidade com outros e em público ou privado”. A liberdade de manifestar religião ou crença por meio de culto, observância, prática e ensino abrange uma ampla gama de atos. O conceito de adoração estende-se a atos ritualísticos e cerimoniais que dão expressão direta à crença, bem como a várias práticas integrais a tais atos, incluindo a construção de locais de culto, o uso de fórmulas e objetos ritualísticos, a exibição de símbolos e a observância de feriados e dias de descanso. A observância e a prática da religião ou crença podem incluir não só atos cerimoniais, mas também costumes, como a observância de regulamentos alimentares, o uso de roupas distintivas ou lenços sobre a cabeça, a participação em rituais associados a certas fases da vida, e o uso de uma língua particular habitualmente falada por um grupo. Além disso, a prática e o ensino da religião ou crença incluem atos que fazem parte da condução, por grupos religiosos, de seus assuntos básicos, como a liberdade para escolher seus líderes religiosos, sacerdotes e professores, a liberdade para estabelecer seminários ou escolas religiosas e a liberdade para preparar e distribuir textos ou publicações religiosas.

5. O Comitê observa que a liberdade de “ter ou de adotar” uma religião ou crença implica necessariamente a liberdade de escolher uma religião ou crença, incluindo o direito de substituir a religião ou crença atual por outra, ou de adotar perspectivas ateístas, bem como o direito de manter sua religião ou crença. O artigo 18.2 proíbe a coerção prejudicial ao direito de ter ou adotar uma religião ou crença, incluindo o uso de ameaça de força física ou sanções penais para obrigar crentes ou não crentes a aderir a determinadas crenças religiosas e congregações, a renegar sua própria religião ou crença, ou a converter-se. As políticas ou práticas que tenham a mesma intenção ou efeito, como, por exemplo, as que restringem o acesso à educação, cuidados médicos, emprego ou a direitos garantidos pelo artigo 25 e outras disposições do Pacto, são igualmente inconsistentes com o artigo 18.2. A mesma proteção é devida aos detentores de quaisquer crenças de natureza não religiosa.

6. O Comitê entende que o artigo 18.4 permite a instrução escolar pública em assuntos como a história geral das religiões e a ética, se for dada de forma neutra e objetiva. A liberdade dos pais ou responsáveis legais de garantir que seus filhos recebam uma educação religiosa e moral em conformidade com suas próprias convicções, estabelecida pelo artigo 18.4, está relacionada às garantias da liberdade de ensinar uma religião ou crença estabelecidas pelo artigo 18.1.      O Comitê observa que a educação pública que inclui instrução numa determinada religião ou crença é inconsistente com o artigo 18.4, a menos que sejam previstas isenções ou alternativas não discriminatórias que acomodem os desejos dos pais e tutores.

7. De acordo com o artigo 20, nenhuma manifestação de religião ou crença pode equivaler a propaganda para a guerra ou defesa do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, hostilidade ou violência. Conforme afirmado pelo Comitê em seu comentário geral n. 11 [19], os Estados Partes estão obrigados a promulgar leis para proibir tais atos.

8. O artigo 18.3 permite restrições à liberdade de manifestar religião ou crença apenas se as limitações forem prescritas por lei e forem necessárias para proteger a segurança pública, a ordem, a saúde ou a moral, ou os direitos e liberdades fundamentais de outros. A liberdade de coerção para ter ou adotar uma religião ou crença e a liberdade de pais e tutores para garantir a educação religiosa e moral não pode ser restringida. Ao interpretar o escopo das cláusulas de limitação permitidas, os Estados Partes devem proceder à necessidade de proteger os direitos garantidos pelo Pacto, incluindo o direito à igualdade e à não discriminação por todos os motivos especificados nos artigos 2, 3 e 26. As limitações impostas devem ser estabelecidas por lei e não devem ser aplicadas de forma a viciar os direitos garantidos pelo artigo 18. O Comitê observa que o parágrafo 3 do artigo 18 deve ser interpretado de modo estrito: não são permitidas restrições por motivos não especificados, mesmo que sejam permitidas como restrições a outros direitos protegidos no Pacto, como a segurança nacional. As limitações só podem ser aplicadas para os fins aos quais foram prescritas e devem ser diretamente relacionadas e proporcionais à necessidade específica em que se baseiam. As restrições não podem ser impostas para fins discriminatórios ou aplicadas de forma discriminatória.   O Comitê observa que o conceito de moral deriva de muitas tradições sociais, filosóficas e religiosas; consequentemente, limitações à liberdade de manifestar uma religião ou crença com o propósito de proteger a moral deve basear-se em princípios que não derivam exclusivamente de uma única tradição. As pessoas já sujeitas a certas restrições legítimas, tais como os prisioneiros, continuam a gozar dos seus direitos de manifestar a sua religião ou crença na maior medida compatível com a natureza específica da restrição. Os relatórios dos Estados Partes devem fornecer informações sobre o alcance e os efeitos das limitações previstas no artigo 18.3, tanto em matéria de direito como de sua aplicação em circunstâncias específicas.

9. O fato de uma religião ser reconhecida como uma religião de Estado ou de ser estabelecida como oficial ou tradicional ou de os seus seguidores constituírem a maioria da população, não resultará em qualquer prejuízo ao gozo de qualquer um dos direitos previstos no Pacto, incluindo os artigos 18 e 27, nem em qualquer discriminação contra adeptos de outras religiões ou não crentes. Em especial, certas medidas discriminatórias contra essas pessoas, tais como medidas que restringem a elegibilidade para o serviço público aos membros da religião predominante ou lhes concedam privilégios econômicos ou imponham restrições especiais à prática de outras religiões, não estão de acordo com a proibição de discriminação baseada na religião ou crença e a garantia de igual proteção nos termos do artigo 26.    As medidas previstas no artigo 20, parágrafo 2 do Pacto constituem importantes salvaguardas contra a violação dos direitos das minorias religiosas e de outros grupos religiosos de exercer os direitos garantidos pelos artigos 18 e 27, e contra atos de violência ou perseguição dirigidos a esses grupos. O Comitê deseja ser informado das medidas tomadas pelos Estados Partes voltadas à proteção das práticas de todas as religiões ou crenças contra violações e à proteção de seus seguidores contra a discriminação. Do mesmo modo, informações relativas ao respeito pelos direitos das minorias religiosas nos termos do artigo 27 são necessárias para que o Comitê possa avaliar em que medida o direito à liberdade de pensamento,  consciência, religião e crença tem sido implementado pelos Estados Partes. Os Estados Partes também devem incluir em seus relatórios informações relativas às práticas consideradas por suas leis e jurisprudência como sendo puníveis como blasfêmias.

10. Se um conjunto de crenças é tratado como ideologia oficial em constituições, estatutos, proclamações dos partidos governantes, etc., ou na prática, isso não deverá resultar em qualquer prejuízo às liberdades previstas no artigo 18 ou em quaisquer outros direitos reconhecidos no âmbito do Pacto nem em qualquer discriminação contra pessoas que não aceitem a ideologia oficial ou que se oponham a ela.

11. Muitos indivíduos reivindicaram o direito de se recusar a realizar o serviço militar (objeção de consciência) com base em que tal direito deriva de suas liberdades nos termos do artigo 18. Em resposta a tais reivindicações, um número crescente de Estados tem, por meio de suas leis, isentado de prestar o serviço militar obrigatório aqueles cidadãos que genuinamente possuem crenças religiosas ou outras que proíbem o desempenho do serviço militar, substituindo-o por algum serviço nacional alternativo.   O Pacto não se refere explicitamente a um direito à objeção de consciência, mas o Comitê considera que tal direito pode ser derivado do artigo 18, na medida em que a obrigação de usar a força letal pode entrar seriamente em conflito com a liberdade de consciência e o direito de manifestar a própria religião ou crença.     Quando esse direito for reconhecido pela lei ou pela prática, não haverá diferenciação entre os objetores de consciência com base na natureza de suas crenças particulares; da mesma forma, não deverá haver discriminação contra os objetores de consciência porque teriam falhado em cumprir o serviço militar. O Comitê convida os Estados Partes a informar sobre as condições em que as pessoas podem ser dispensadas do serviço militar com base em seus direitos previstos no artigo 18 e sobre a natureza e a duração do serviço nacional alternativo.